terça-feira, 31 de março de 2015

CAMINHOS PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSFORMADORA HOJE, NO CAMPO PESSOAL, COMUNITÁRIO E SOCIAL



Por 
Romildo Gurgel


Atualmente, o tema espiritualidade parece ser um tema bastante recorrente em nossa cultura. Ele aparece tanto no âmbito religioso, ambiente este com múltiplas apresentações e percepções bastante variadas, encontrando aí o seu ambiente natural como o campo mais amplo, como também nas mais diversas áreas onde o ser humano se encontra.  Hoje tanto jovens, como adultos, estudiosos filósofos e cientistas, empresários e executivos e aqueles que estão sobre o poder econômico incorporam em suas ações certo tipo de espiritualidade.  Há também aqueles que pensam que espiritualidade tem a sua pauta em retiros de meditação, e aqueles que suas famílias optaram para que seus filhos estudassem em colégios religiosos, ou ainda, os monges em suas enclausuras, passando por experiências isoladas. Poderemos afirmar que todo ser humano tem sede de se encontrar com sigo mesmo e com Deus para achar a respostar do porquê estamos aqui. Não há quem fique de fora dessa realidade pessoal, quer seja ela intencional, percebida ou não.  O apóstolo Paulo escrevendo a Igreja de Éfeso traduz com veracidade declarando dois tipos de pessoas no mundo: as que estão “em Cristo” e as que não estão em Cristo (cf. Efésios 2:1-2). A queda reduziu a humanidade a um estado de espiritualidade independente, onde predomina alienação ao curso do mundo, ao seu príncipe como sendo o da potestade do ar, do espírito que age naqueles que não obedecem ao evangelho de Jesus Cristo, inclinados a vontade da carne e dos pensamentos. A escritura sagrada, classifica esta classe de humanos como uma classe independente (híbrida) – caracterizada como morta nos seus delitos e pecados (v.1) e viva aos que mediante a fé está unida com Cristo, através da Sua graça salvadora (v.5).  
            Sendo assim, todos nós incorporamos quer queiramos ou não algum estado de espiritualidade, consciente ou inconscientemente.  Veja o que (Droogen, p.124) observou sobre essa possibilidade:
 A espiritualidade elabora uma atitude, um comportamento que concretiza simbolicamente com o sagrado. Estas relações com o sagrado têm consequências para as suas relações com o mundo e com os outros homens.

O homem é o reflexo da relação do estar sem ou com Cristo. O estar em Cristo, o Espírito Santo assume a posição inspirando-o para criar esse vínculo relacional e simbólico. Ao criar símbolos, o homem se mostra sujeito ativo ao invés de objeto passivo. Por isso, ele possibilita a abertura do mistério. O invisível fica invisível, misterioso, mas deixa-se conhecer e tornar-se visível.
            O apóstolo Paulo valida esta ideia ao escrever a igreja de Corinto, comunidade fraca em diversas áreas, que como comunidade de Deus seus pecados poderiam ser observados sem muito esforço. Ele ensinou a esta comunidade que ela poderia trazer a imagem do espiritual da mesma forma que estavam trazendo a imagem do terreno, ao escrever:
E, assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial" (1Coríntios 15:49)
“...todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito” (2Coríntios 3:18).

Conforme os textos citados acima, a imagem do celestial se torna possível através da educação contemplativa, ocorrendo de uma forma enigmática, como um reflexo de um espelho. Se observarmos nossa imagem frente a um espelho, contemplaremos a nossa aparência, o espelho refletirá a nossa imagem. A imagem é o reflexo de uma realidade visual, sem que ela mesma seja uma realidade, mas apenas uma transmissão visionária da aparência, como se uma pessoa descrevesse você através dos seus próprios olhos. Pela imagem refletida, muitos detalhes poderão ser observados da nossa aparência, é aí que surge uma conversa consigo mesmo e com o próprio coração, porém, o reflexo da amostragem dessa realidade visionária fala que algo pode ser mudado, é a partir daí que a imagem serve de condutor a possíveis transformações e mudanças. O retoque natural é como um reboco aparente de uma maquiagem exterior, que pode ser também uma camuflagem, mas não temos o recurso para as transformações de tal dimensão transformadora. O ensino no Espírito é refletir a glória da imagem de Deus como por um espelho. É um grande milagre! O espelho revela duas imagens a sua e ao mesmo tempo a imago Dei. A imagem de Deus se perdeu no homem, ela foi desfigurada com a queda na transgressão da vontade do pecado. Mas a imagem do homem, frente a imagem de Deus, o Espírito Santo faz com que percebamos essa diferença mostrando-nos a impossibilidade natural de qualquer retoque que possa ficar ao menos parecido com a Sua imagem. Os olhos humanos são abertos e aguçados, para perceberem alguma mudança feita pelo Espírito Santo, quando comparada a imagem do seu próprio ser, perceberá algo parecido, transformação essa que foi incluída no velho reflexo.  A imago Dei no ser humano continua intacta no coração de Deus. Deus se fez carne em Jesus Cristo onde 100% foi homem e Deus. Esta realidade de Deus só é revelada por e través do Espírito Santo que habita em nós, cujo reflexo transmite com precisão, a imagem de Deus, transformando-nos pela imagem contemplada de glória em glória através do espelho.
O ensino espiritual parte da observação desse reflexo obscuro, mas real. Contemplar o nosso rosto, é perceber pela imagem a nossa condição de pecadores, é contemplar a exposição da nossa natureza caída e desfigurada que foi alterada, e a partir daí, se evidencia a norma da lei, que encerra todos debaixo do pecado. O reflexo que é espiritual, poderá servir de um condutor a Cristo, que na relação entre mestre e discípulo poderá transformar o coração e aformosear o rosto.  O ensino de Cristo, é feito por esta pedagogia através do Espírito Santo.
Tiago ao escrever sua epístola explicita melhor essa ideia, associando o retoque do espelho através da prática da palavra para que haja a possibilidade de haver a manifestação da imagem do espiritual. O princípio de encarnar as palavras das escrituras sagradas, significa para nós um reflexo de Deus na nossa face, uma imago Dei, que revela o caráter de Deus e ao mesmo tempo do ser humano transformado através dessa imagem. Tiago escreveu:
"Aquele que ouve a palavra, mas não a põe em prática, é semelhante a um homem que olha a sua face num espelho e, depois de olhar para si mesmo, sai e logo esquece a sua aparência". (Tiago 1:23-24)
A prática da palavra altera toda imagem velha alienadora. Não se pode pensar em espiritualidade sem pensar em transformação, conversão pessoal e serviço. A transformação da vida, a conversão do coração e o serviço ao outro. É característica de alguém que possui um genuíno relacionamento com Deus: a) Andar em novidade de vida, refletida na sua forma de viver os valores do Reino de Deus (2 Co. 5.17); b) Haver conversão genuína do seu coração, que agora coloca todas as suas emoções sob o controle do Espírito de Deus (Fl 4. 4-9); e c) Ter uma vida de serviço e altruísmo ao próximo (Jo. 13.1-17), refletindo de maneira concreta e real o caráter de Cristo.
Frente a um espelho pode acontecer de tudo. Como frisa muito bem (Droogen, p.126):
 “Quanto aos meios de expressão, cada espiritualidade faz uma seleção de um leque de possibilidades. Ela pode usar o corpo ou negá-lo, apelar a toda a personalidade ou só a uma parte. Ela usa todos os cinco sentidos ou só alguns. Ela pode ter um caráter emocional ou, ao contrário, racional. O corpo pode ser usado de muitas maneiras. A espiritualidade pode exigir uma certa atitude do corpo, certos movimentos e gestos”. 
Apoia e muito o que comenta Droogen e que é bem compatível com o que o apóstolo Paulo escreveu a igreja Romana:
(v.12) - “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais ás suas paixões;
(v.13) - Nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado como instrumento de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros a Deus como instrumento de justiça” (Romanos 6:12-13)
Os membros do nosso corpo podem pela perseverança da tentação, forçar o corpo a ser instrumento do pecado; do mesmo modo, tais membros podem estar disponíveis a Deus para a prática da sua vontade através da Sua Palavra em justiça revelada por meio da fé.
Penso que o tema espiritualidade tem a ver com a pessoa toda e a vida toda. Excluindo uma forma de expressão individualista, pois o homem é um ser social. Acredito que nada disso acontece sem que haja um processo contínuo e radical de discipulado na fé para que isso se suceda, uma vez que é através do ensino que ocorre a transformação do coração. Somos desafiados a incorporar no nosso modus vivendi um discipulado radical, contínuo e transformador.

ESPIRITUALIDADE COMUNITÁRIA E SOCIAL

            Aprecio a clareza elucidativa de Leonardo Boff quando trata do assunto entre o reino de Deus e a comunidade da fé, a Igreja. Ele escreveu:
“O cano da água não é água e o que ilumina é a chama não a vela acesa” (BOOF, p.39).
            Com essas palavras, Boff está afirmando que Jesus não anunciou uma Igreja, ele anunciou o Reino de Deus e a transformação interior (conversão). Posteriormente, no seu lugar, surgiu a Igreja como comunidade de fieis que crêem em Jesus.   Não são poucas as comunidades que infelizmente identificam o Reino de Deus com a Igreja. Este erro tem feito com que a maioria das nossas concentrações de serviços ministeriais fiquem centralizadas no púlpito, no clero, no domingo e no templo. A igreja, ao invés de se apresentar como agência sinalizadora do caminho de salvação, se apresenta como um fim em si mesma.  O que deve contar como relevância e singularidade é a experiência que a comunidade tem com Jesus de Nazaré. Somos herdeiros de Deus não pelo fato de estarmos em uma instituição cristã e seguimos os seus dogmas e preceitos. A verdade disso é que estaremos sujeitos a esta herança se continuamente tentarmos reviver a experiência de Jesus como prática e regra de nossa fé. Desta maneira, estaremos demonstrando que somos filhos e filhas de Deus como quem contempla seu rosto reverentemente enquanto nossos pecados são perdoados.
            Se uma comunidade cristã produz essa forma eclesial, frisa Boof, ela se transforma em caminho espiritual.
(Droogen, citando Hermann Brandt, p.112), definiu como espiritualidade comunitária o exemplo de uma lâmpada em cima de uma mesa: ela ilumina a mesa, mas serve também para ver fenômenos ao redor desta mesa. Nesta mesma linha de raciocínio o apóstolo Paulo escreveu:
“...quem é espiritual discerne todas as coisas e de ninguém é discernido.” (1Co.2:15).
Este pensamento transcreve a influência iluminadora que a espiritualidade conduz, discernindo aquilo que está em volta, bem como ao mesmo tempo, refletindo a imagem da glória de Deus. Na conecção Deus/Homem, a glória de Deus passa pelo ser do homem na vivência das virtudes cristãs (MULLER, p.34)
As palavras de Jesus sobre este assunto são;
“Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a coloca debaixo de uma vasilha Ao contrário coloca-a no lugar apropriado, assim ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que está nos céus”. (Mateus 5:14-16).
Jesus aqui tenciona em dizer que somos os portadores dessa luz para trazer as cores de Deus ao mundo. Deus não deve ser um segredo para ser ocultado, ele deve ser mostrado publicamente através dos nossos gestos, atitudes e ações. Deus nos fez ser portadores de luz com a finalidade de que essa luz brilhe. Nós não temos luz própria. Sem Cristo somos apagados, aparece só a imagem do terreno, mas, uma vez acesos, não se pode ocultar tal luz da imagem de Deus em nossa união com Jesus Cristo de Nazaré.
Concordo com (RENDERS, p.95), quando diz que o cristianismo é essencialmente uma religião social, e tratar de torna-la uma religião solitária é, na verdade, destruí-la. De maneira nenhuma pode existir sem a sociedade, sem conviver e falar com outros seres humanos. A fé precisa ser operada em amor, existindo uma conecção da comunidade da fé com a que não tem fé. A missão é na fronteira e no contexto do reino de Deus, não é nossa, é de Deus. A oração ensinada por Jesus é chave quando mencionou essas palavras: “teu reino”, “tua vontade”, percebe-se ainda que nada é individualizado quando mencionou ainda estas: “Pai nosso”, “pão nosso”, “nossas dívidas”, “nossos devedores” (cf. Mateus 6:9-13). Sendo assim, penso que deva existir um lado interno, comum para que haja o acontecimento de um autêntico discipulado e, o lado da comunidade em sua volta que não abraçou a fé ainda. Até acontecer uma transformação como diz (Moltmann, p.87):
 “O Espírito de Deus que vivifica não somente liberta a alma de seu amor acidentado, mas também o corpo de suas contorções e intoxicações”.
Finalizando, quero colocar o seguinte: a espiritualidade não é um monopólio das religiões, nem tão pouco um caminho codificado a trilhar. A espiritualidade é uma dimensão de um encontro do homem com Deus. Essa dimensão se revela pelo diálogo consigo mesmo e com o próprio coração. Neste encontro com Deus, nos encontramos e somos aceitos e perdoados, voltamos ao nosso estado de originalidade perdida em Adão e nos encontramos em Deus através do Seu Filho Jesus Cristo “ultimo Adão”, tornando-nos sal e luz do mundo. Acredito que um dos maiores desafios da espiritualidade missional de hoje é fazer com que as comunidades tenham uma experiência real com Deus e não com o fenômeno evangélico, através de suas doutrinas, dogmas, ritos, celebrações que são apenas caminhos institucionais sinalizadores capazes de nos ajudar na espiritualidade, mas que só acontece, a experiência, depois da espiritualidade e não antes, como se é nomeado hoje. A Igreja como comunidade é o resultado de um encontro com Deus. Ela nasceu através do encontro com a verdade, cujo fundamento é a revelação do Cristo filho de Deus (cf. Mateus 16:13-18).

Romildo Fernandes Gurgel Filho

Bibliografia:
1 – BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de transformação. 1ª Edição. Editora Sextante. 2001. p.39.
2 – MUELLER, Ênio R. Espelho, Espelho Meu. Reflexões sobre os fundamentos de uma Espiritualidade Evangélica. Texto 1 unidade 1. p.34.
3 -  http://crendoepensando.blogspot.com.br/2007/06/misso-integral-e-espiritualidade.html -  Acessado em 25/03/2015 as 11:36 h.
4 – www.discipulosdecristoprromildo.blogspot.com.br - acessado em 27/03/2015.
5 – DROOGEN, André. Espiritualidade: O problema da definição. Texto 2 da unidade 1. p.112.
6 – BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de Transformação. 1ª Edição. Editora Sextante. 2001. Pr.38-39.
7 – RENDERS, Helmut. O Plano para a vida e a Missão e sua Espiritualidade correspondente. Um novo olhar numa questão essencial. Unidade 8 apostila (1). p.95.
8 – MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida, O Espírito e a Teologia da Vida. Editora Loyola – p.87.


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