Romildo Gurgel
Atualmente,
o tema espiritualidade parece ser um tema bastante recorrente em nossa cultura.
Ele aparece tanto no âmbito religioso, ambiente este com múltiplas
apresentações e percepções bastante variadas, encontrando aí o seu ambiente natural
como o campo mais amplo, como também nas mais diversas áreas onde o ser humano
se encontra. Hoje tanto jovens, como
adultos, estudiosos filósofos e cientistas, empresários e executivos e aqueles
que estão sobre o poder econômico incorporam em suas ações certo tipo de
espiritualidade. Há também aqueles que
pensam que espiritualidade tem a sua pauta em retiros de meditação, e aqueles
que suas famílias optaram para que seus filhos estudassem em colégios
religiosos, ou ainda, os monges em suas enclausuras, passando por experiências
isoladas. Poderemos afirmar que todo ser humano tem sede de se encontrar com
sigo mesmo e com Deus para achar a respostar do porquê estamos aqui. Não há
quem fique de fora dessa realidade pessoal, quer seja ela intencional,
percebida ou não. O apóstolo Paulo
escrevendo a Igreja de Éfeso traduz com veracidade declarando dois tipos de
pessoas no mundo: as que estão “em Cristo” e as que não estão em Cristo (cf.
Efésios 2:1-2). A queda reduziu a humanidade a um estado de espiritualidade
independente, onde predomina alienação ao curso do mundo, ao seu príncipe como
sendo o da potestade do ar, do espírito que age naqueles que não obedecem ao
evangelho de Jesus Cristo, inclinados a vontade da carne e dos pensamentos. A
escritura sagrada, classifica esta classe de humanos como uma classe
independente (híbrida) – caracterizada como morta nos seus delitos e pecados
(v.1) e viva aos que mediante a fé está unida com Cristo, através da Sua graça
salvadora (v.5).
Sendo assim, todos nós incorporamos
quer queiramos ou não algum estado de espiritualidade, consciente ou inconscientemente.
Veja o que (Droogen, p.124) observou
sobre essa possibilidade:
A
espiritualidade elabora uma atitude, um comportamento que concretiza
simbolicamente com o sagrado. Estas relações com o sagrado têm consequências
para as suas relações com o mundo e com os outros homens.
O
homem é o reflexo da relação do estar sem ou com Cristo. O estar em Cristo, o
Espírito Santo assume a posição inspirando-o para criar esse vínculo relacional
e simbólico. Ao criar símbolos, o homem se mostra sujeito ativo ao invés de
objeto passivo. Por isso, ele possibilita a abertura do mistério. O invisível
fica invisível, misterioso, mas deixa-se conhecer e tornar-se visível.
O
apóstolo Paulo valida esta ideia ao escrever a igreja de Corinto, comunidade
fraca em diversas áreas, que como comunidade de Deus seus pecados poderiam ser
observados sem muito esforço. Ele ensinou a esta comunidade que ela poderia
trazer a imagem do espiritual da mesma forma que estavam trazendo a imagem do
terreno, ao escrever:
E, assim como trouxemos a imagem do que é
terreno, devemos trazer também a imagem do celestial" (1Coríntios 15:49)
“...todos nós, que com a face descoberta contemplamos
a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória
cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito” (2Coríntios 3:18).
Conforme
os textos citados acima, a imagem do celestial se torna possível através da
educação contemplativa, ocorrendo de uma forma enigmática, como um reflexo de
um espelho. Se observarmos nossa imagem frente a um espelho, contemplaremos a
nossa aparência, o espelho refletirá a nossa imagem. A imagem é o reflexo de
uma realidade visual, sem que ela mesma seja uma realidade, mas apenas uma
transmissão visionária da aparência, como se uma pessoa descrevesse você através
dos seus próprios olhos. Pela imagem refletida, muitos detalhes poderão ser
observados da nossa aparência, é aí que surge uma conversa consigo mesmo e com
o próprio coração, porém, o reflexo da amostragem dessa realidade visionária
fala que algo pode ser mudado, é a partir daí que a imagem serve de condutor a possíveis
transformações e mudanças. O retoque natural é como um reboco aparente de uma
maquiagem exterior, que pode ser também uma camuflagem, mas não temos o recurso
para as transformações de tal dimensão transformadora. O ensino no Espírito é
refletir a glória da imagem de Deus como por um espelho. É um grande milagre! O
espelho revela duas imagens a sua e ao mesmo tempo a imago Dei. A imagem de Deus se perdeu no homem, ela foi desfigurada
com a queda na transgressão da vontade do pecado. Mas a imagem do homem, frente
a imagem de Deus, o Espírito Santo faz com que percebamos essa diferença
mostrando-nos a impossibilidade natural de qualquer retoque que possa ficar ao
menos parecido com a Sua imagem. Os olhos humanos são abertos e aguçados, para
perceberem alguma mudança feita pelo Espírito Santo, quando comparada a imagem
do seu próprio ser, perceberá algo parecido, transformação essa que foi
incluída no velho reflexo. A imago Dei no ser humano continua intacta
no coração de Deus. Deus se fez carne em Jesus Cristo onde 100% foi homem
e Deus. Esta realidade de Deus só é revelada por e través do Espírito Santo que
habita em nós, cujo reflexo transmite com precisão, a imagem de Deus,
transformando-nos pela imagem contemplada de glória em glória através do
espelho.
O
ensino espiritual parte da observação desse reflexo obscuro, mas real.
Contemplar o nosso rosto, é perceber pela imagem a nossa condição de pecadores,
é contemplar a exposição da nossa natureza caída e desfigurada que foi alterada,
e a partir daí, se evidencia a norma da lei, que encerra todos debaixo do
pecado. O reflexo que é espiritual, poderá servir de um condutor a Cristo,
que na relação entre mestre e discípulo poderá transformar o coração
e aformosear o rosto. O ensino de Cristo, é feito por esta pedagogia
através do Espírito Santo.
Tiago
ao escrever sua epístola explicita melhor essa ideia, associando o retoque do
espelho através da prática da palavra para que haja a possibilidade de haver a
manifestação da imagem do espiritual. O princípio de encarnar as palavras das
escrituras sagradas, significa para nós um reflexo de Deus na nossa face, uma imago Dei, que revela o caráter de Deus
e ao mesmo tempo do ser humano transformado através dessa imagem. Tiago
escreveu:
"Aquele que
ouve a palavra, mas não a põe em prática, é semelhante a um homem que olha a
sua face num espelho e, depois de olhar para si mesmo, sai e logo esquece a sua
aparência". (Tiago 1:23-24)
A prática da palavra altera toda
imagem velha alienadora. Não se pode pensar em espiritualidade sem pensar em
transformação, conversão pessoal e serviço. A transformação da vida, a
conversão do coração e o serviço ao outro. É característica de alguém que possui
um genuíno relacionamento com Deus: a) Andar em novidade de vida, refletida na
sua forma de viver os valores do Reino de Deus (2 Co. 5.17); b) Haver conversão
genuína do seu coração, que agora coloca todas as suas emoções sob o controle
do Espírito de Deus (Fl 4. 4-9); e c) Ter uma vida de serviço e altruísmo ao
próximo (Jo. 13.1-17), refletindo de maneira concreta e real o caráter de
Cristo.
Frente a um espelho pode
acontecer de tudo. Como frisa muito bem (Droogen, p.126):
“Quanto
aos meios de expressão, cada espiritualidade faz uma seleção de um leque de
possibilidades. Ela pode usar o corpo ou negá-lo, apelar a toda a personalidade
ou só a uma parte. Ela usa todos os cinco sentidos ou só alguns. Ela pode ter
um caráter emocional ou, ao contrário, racional. O corpo pode ser usado de
muitas maneiras. A espiritualidade pode exigir uma certa atitude do corpo,
certos movimentos e gestos”.
Apoia e muito o que comenta Droogen
e que é bem compatível com o que o apóstolo Paulo escreveu a igreja Romana:
(v.12) - “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de
maneira que obedeçais ás suas paixões;
(v.13) - Nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado como
instrumento de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus como ressurretos dentre os
mortos, e os vossos membros a Deus como instrumento de justiça” (Romanos
6:12-13)
Os membros do nosso corpo podem
pela perseverança da tentação, forçar o corpo a ser instrumento do pecado; do
mesmo modo, tais membros podem estar disponíveis a Deus para a prática da sua vontade
através da Sua Palavra em justiça revelada por meio da fé.
Penso que o tema espiritualidade
tem a ver com a pessoa toda e a vida toda. Excluindo uma forma de expressão
individualista, pois o homem é um ser social. Acredito que nada disso acontece
sem que haja um processo contínuo e radical de discipulado na fé para que isso
se suceda, uma vez que é através do ensino que ocorre a transformação do
coração. Somos desafiados a incorporar no nosso modus vivendi um discipulado radical, contínuo e transformador.
ESPIRITUALIDADE
COMUNITÁRIA E SOCIAL
Aprecio a clareza elucidativa de Leonardo Boff quando trata do assunto entre
o reino de Deus e a comunidade da fé, a Igreja. Ele escreveu:
“O cano da água não é água e o que ilumina é a chama
não a vela acesa” (BOOF, p.39).
Com
essas palavras, Boff está afirmando que Jesus não anunciou uma Igreja, ele
anunciou o Reino de Deus e a transformação interior (conversão).
Posteriormente, no seu lugar, surgiu a Igreja como comunidade de fieis que
crêem em Jesus. Não são poucas as
comunidades que infelizmente identificam o Reino de Deus com a Igreja. Este
erro tem feito com que a maioria das nossas concentrações de serviços
ministeriais fiquem centralizadas no púlpito, no clero, no domingo e no templo.
A igreja, ao invés de se apresentar como agência sinalizadora do caminho de
salvação, se apresenta como um fim em si mesma.
O que deve contar como relevância e singularidade é a experiência que a
comunidade tem com Jesus de Nazaré. Somos herdeiros de Deus não pelo fato de
estarmos em uma instituição cristã e seguimos os seus dogmas e preceitos. A
verdade disso é que estaremos sujeitos a esta herança se continuamente
tentarmos reviver a experiência de Jesus como prática e regra de nossa fé.
Desta maneira, estaremos demonstrando que somos filhos e filhas de Deus como
quem contempla seu rosto reverentemente enquanto nossos pecados são perdoados.
Se uma comunidade cristã produz essa
forma eclesial, frisa Boof, ela se transforma em caminho espiritual.
Já (Droogen,
citando Hermann Brandt, p.112), definiu como espiritualidade comunitária o
exemplo de uma lâmpada em cima de uma mesa: ela ilumina a mesa, mas serve
também para ver fenômenos ao redor desta mesa. Nesta mesma linha de raciocínio
o apóstolo Paulo escreveu:
“...quem é espiritual discerne todas
as coisas e de ninguém é discernido.” (1Co.2:15).
Este
pensamento transcreve a influência iluminadora que a espiritualidade conduz, discernindo
aquilo que está em volta, bem como ao mesmo tempo, refletindo a imagem da glória
de Deus. Na conecção Deus/Homem, a glória de Deus passa pelo ser do homem na
vivência das virtudes cristãs (MULLER, p.34)
As
palavras de Jesus sobre este assunto são;
“Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma
cidade construída sobre um monte. E, também, ninguém acende uma candeia e a
coloca debaixo de uma vasilha Ao contrário coloca-a no lugar apropriado, assim
ilumina a todos os que estão na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos
homens, para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês, que
está nos céus”. (Mateus 5:14-16).
Jesus
aqui tenciona em dizer que somos os portadores dessa luz para trazer as cores
de Deus ao mundo. Deus não deve ser um segredo para ser ocultado, ele deve ser
mostrado publicamente através dos nossos gestos, atitudes e ações. Deus nos fez
ser portadores de luz com a finalidade de que essa luz brilhe. Nós não temos
luz própria. Sem Cristo somos apagados, aparece só a imagem do terreno, mas,
uma vez acesos, não se pode ocultar tal luz da imagem de Deus em nossa união
com Jesus Cristo de Nazaré.
Concordo
com (RENDERS, p.95), quando diz que o cristianismo é essencialmente uma religião
social, e tratar de torna-la uma religião solitária é, na verdade, destruí-la.
De maneira nenhuma pode existir sem a sociedade, sem conviver e falar com
outros seres humanos. A fé precisa ser operada em amor, existindo uma conecção
da comunidade da fé com a que não tem fé. A missão é na fronteira e no contexto
do reino de Deus, não é nossa, é de Deus. A oração ensinada por Jesus é chave
quando mencionou essas palavras: “teu reino”, “tua vontade”, percebe-se ainda
que nada é individualizado quando mencionou ainda estas: “Pai nosso”, “pão
nosso”, “nossas dívidas”, “nossos devedores” (cf. Mateus 6:9-13). Sendo assim,
penso que deva existir um lado interno, comum para que haja o acontecimento de
um autêntico discipulado e, o lado da comunidade em sua volta que não abraçou a
fé ainda. Até acontecer uma transformação como diz (Moltmann, p.87):
“O Espírito de
Deus que vivifica não somente liberta a alma de seu amor acidentado, mas também
o corpo de suas contorções e intoxicações”.
Finalizando,
quero colocar o seguinte: a espiritualidade não é um monopólio das religiões,
nem tão pouco um caminho codificado a trilhar. A espiritualidade é uma dimensão
de um encontro do homem com Deus. Essa dimensão se revela pelo diálogo consigo
mesmo e com o próprio coração. Neste encontro com Deus, nos encontramos e somos
aceitos e perdoados, voltamos ao nosso estado de originalidade perdida em Adão
e nos encontramos em Deus através do Seu Filho Jesus Cristo “ultimo Adão”,
tornando-nos sal e luz do mundo. Acredito que um dos maiores desafios da
espiritualidade missional de hoje é fazer com que as comunidades tenham uma
experiência real com Deus e não com o fenômeno evangélico, através de suas
doutrinas, dogmas, ritos, celebrações que são apenas caminhos institucionais sinalizadores
capazes de nos ajudar na espiritualidade, mas que só acontece, a experiência,
depois da espiritualidade e não antes, como se é nomeado hoje. A Igreja como
comunidade é o resultado de um encontro com Deus. Ela nasceu através do
encontro com a verdade, cujo fundamento é a revelação do Cristo filho de Deus
(cf. Mateus 16:13-18).
Romildo
Fernandes Gurgel Filho
Bibliografia:
1 – BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de transformação. 1ª Edição. Editora
Sextante. 2001. p.39.
2 – MUELLER, Ênio R. Espelho, Espelho Meu. Reflexões sobre os fundamentos de uma
Espiritualidade Evangélica. Texto 1 unidade 1. p.34.
3 - http://crendoepensando.blogspot.com.br/2007/06/misso-integral-e-espiritualidade.html
- Acessado em 25/03/2015 as 11:36 h.
4 – www.discipulosdecristoprromildo.blogspot.com.br -
acessado em 27/03/2015.
5 – DROOGEN, André. Espiritualidade: O problema da definição. Texto 2 da unidade 1.
p.112.
6 – BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de Transformação. 1ª Edição. Editora
Sextante. 2001. Pr.38-39.
7 – RENDERS, Helmut. O Plano para a vida e a Missão e sua Espiritualidade correspondente. Um
novo olhar numa questão essencial. Unidade 8 apostila (1). p.95.
8 – MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida, O Espírito e a Teologia da Vida. Editora Loyola – p.87.
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