sexta-feira, 17 de julho de 2015

CONTEXTUALIZAÇÃO DO EVANGELHO E CULTURA

Por
Romildo Gurgel


O mandato imperativo de Jesus a sua Igreja, trata-se de um mandato cultural. Não há como se pensar em propagação do evangelho desconsiderando o contexto sócio cultural, político e econômico onde as pessoas construíram essa cultura. A propagação do evangelho na singularidade da missão da Igreja, deve rever em si, a missio dei, que é a intenção de Deus de estabelecer a comunhão com a humanidade uma vez perdida e restaurá-la ao estado de sua originalidade. Tratar da proclamação do evangelho mantendo o foco unicamente em salvação de almas, é ferir gravemente a intenção de Deus no seu propósito original antes da queda.
Com essa reflexão, a minha intenção consistirá em descrever alguns desafios extraídos de realidades atuais, frente ao que resultou da proclamação do evangelho em nossa cultura. Estarei mantendo esse foco não de uma forma ampla, mas descortinando a questão daquilo que deveria ser e ao mesmo tempo desafiando a uma contextualização mais sadia.  
Dentro da intenção original de Deus antes da queda, (Souza p.57) comenta que no livro de Gênesis, Deus incentiva o homem a produzir cultura na forma de permitir que ele institua atos, nomeie nomes, exerça tarefas, classifique e divida o tempo, invente modos de exercer domínio, etc. Dessa forma, uma cultura ou um comportamento instituído como: Santa ceia, batismo, ritos, liturgias, testemunho da fé, teologia, circuncisão, etc., podem ser inspirados por Deus, porém o modo e os meios de realização serão sempre uma decisão humana culturalmente influenciada, podendo diferenciar em diferentes locais.
A revelação bíblica como um bem a ser comunicado, acondiciona um mandato cultural sob diversos sentidos:
Não existe revelação sem mediação cultural – A medida que a revelação deixa de ser sentimento e torna-se linguagem simbólica, ela só assumirá identidade no mundo humano senão por meio dos recursos disponíveis no universo cultural na felicidade de ser compreendida, percebida para poder ser sentida. A crença só será veiculada por intermédio da cultura, intercâmbio dos fluxos. O Verbo, que era Deus, para revelar-se aos homens fez-se carne e manifestou-se culturalmente, trazendo o conhecimento da glória de Deus.  Podemos afirmar que a atitude de Jesus se integrava a cultura judaica e por algumas vezes Ele se colocava contra ela. Todas as vezes que ele percebia que se alguma prática cultural o privava ao acesso às pessoas, ele se permitia romper com os padrões culturais vigentes para a comunicação do seu Evangelho. Em outros casos, as práticas culturais que não passavam de atividades do cotidiano, e que não feriam o valor do evangelho, Jesus se adaptava sem nenhum problema. (Apostila p.73)
Pensando sobre o testemunho cristão, podemos levar em consideração que ele é tanto comunicação como expressão. Não haverá contato com o mundo sem um sistema simbólico inteligível que permita a circulação da informação, pois essas informações precisam ser percebidas linguisticamente e comportalmentemente. Ela tem que assumir uma língua, um gesto, ela assume a ética e a moral e nomeia regras.
A instituição de uma igreja, socialmente organizada, por mais simples que seja, é inquestionavelmente um processo de aculturação.  A Igreja ao instalar-se entre as cidades e nações não faz missão sem interagir com os padrões culturais existentes ali, ela ao mesmo tempo assimila, nega, transforma e assume tais padrões. A presença da Igreja no contexto cultural só acontece em processos de adaptação da revelação das escrituras ao mundo da cultura.
 Por outro lado, a fé cristã não pode encerrar-se em um gueto fechado, privado, como resultado final sem nada a dizer para o contexto do mundo. Pensar no cumprimento do mandato imperativo de Jesus, trata-se em afirmar o intercâmbio de três culturas: O das escrituras sagradas, a ideia central do editor, a do portador da mensagem e a daquele que recebe mensagem. Como David Hesselgrave descreve em seus estudos, afirmando que na proclamação do evangelho, estas três culturas se interceptam. Quanto ao conteúdo da mensagem, o importante consiste na fidelização do texto do editor, independentemente da linha teológica do proclamador. O fundamental é o que o texto na sua originalidade venha ser anunciado como realmente ele é e diz, sem que sofra alteração ao interpretá-lo para a cultura receptora. Como o fim da mensagem tem a tendência de afunilar-se na intenção da salvação de almas e subsequentemente a formação da comunidade eclesial, instituir regras e atos, nomear funções para exercícios de tarefas, classificar a divisão de tempo e uma certa forma de exercício de domínio, pode ajudar ou também inibir aquilo que o texto bíblico realmente quer dizer. Isto deveria acontecer de uma forma mais ampla e não unicamente só no âmbito institucional, denominacional.   Uma frase tecida por Leonardo Boff encaixa-se bem ao descrever o resultado da intenção do mensageiro, mensagem e receptor. Ele diz:
“O cano da água não é água e o que ilumina é a chama não a vela acesa” (BOOF, p.39).
              Com essas palavras, Boff está afirmando que Jesus não anunciou uma Igreja, ele anunciou o Reino de Deus e a transformação interior (conversão). Claro que a mensagem se confunde muito bem com aquele que a proclama e pelo seu resultado final. Porém, vale salientar que o proclamador é apenas o condutor da mensagem das verdades bíblicas, assim como a do cano é a de conduzir a água e a vela a chama acessa, muito embora seja inevitável este mescla-se do editor das escrituras com alguns traços inerentes na cultura do proclamado, que ainda por sua vez, trabalhará na contextualização da cultura receptora. Posteriormente, no seu lugar, surgiu a Igreja como comunidade de fieis que crê em Jesus e que expressa sua relação com Deus nesta nova cultura evangelizada.
Pensando nos resultados da proclamação, as comunidades de fé em Jesus Cristo deveriam em primeira mão, se preocupar em interpretar a mensagem bíblica ao invés de transmitir o evangelho aculturado da sua cultura.  Neste caso a cultura junto com certas tradições podem impedir o livre fluxo do evangelho ao mundo. Como o exemplo ocorrido no encontro de Pedro com Cornélio no livro de Atos 10:148;11-18 (apostila p.74). Para que Pedro rompesse com a tradição teológica judaica-cristã, Deus precisou interferir através de uma visão, onde o apóstolo deveria matar os animais e comê-los, gesto esse que na cultura judaica-cristã da sua época eram consideradas impuras e imundas. Já na casa de Cornélio, por sua vez, Deus se revelou fornecendo o endereço onde se encontrava o apóstolo para que ele fosse chamado para esclarecer pormenorizadamente acerca do reino de Deus. Cornélio como devoto a Deus, não teve problemas de enviar mensageiros a procura de Pedro, mas para Pedro, romper com a cultura teológica judaica-cristã que estava arraigado precisou ser quebrada, para que ele não resistisse em se hospedar na casa de um gentio. As lições aqui são muitas, mas a intenção de Deus, é que Pedro não deveriam ser impedidos de anunciar o evangelho em cultura que diferenciasse da dele, pois Deus deseja salvar toda a humanidade em diferentes culturas. Enfim, Pedro entendeu a visão. O texto ensina que o proclamador rompeu com as tradições teológicas instaladas em sua cultura com certa relutância, e o que resultou com este rompimento foi o mesmo que aconteceu na comunidade em Jerusalém. Deus derrama o seu Espírito tanto para Judeus como também para os gentios. Diante deste rico exemplo, o que se vê formado em muitas comunidades cristãs, é o demasiado zelo de uma certa tradição teológica, que isola as comunidades cristãs entre si e o mundo, comprometendo assim a missão da igreja de uma forma integral. No entanto, dentro do modus vivendi, cada igreja, deveria expressar aquilo que é comum à sua cultura sem que fira a originalidade da interpretação bíblica e evitar criar novos modelos de teologia que se transforme em uma possível tradição, principalmente aquilo que é bem comum nas relações entre outras igrejas, na sua comunidade já contextualizadas. As vezes se percebe que há um certo respeito, mas não suportamos o estar por perto. A verdade é que, as muitas interpretações bíblicas têm levado as comunidades se isolarem entre si, e criarem seus próprios grupos de forma que ao se multiplicarem levam consigo o seu próprio isolamento como forma de se proteger das outras comunidades eclesiais e também do mundo. Claro que os aspectos teológicos adotados como regra de normatização da fé e da comunidade, é defendida e muito bem defendida, com forte tendência a se manterem fechadas àquilo que poderia ser comum e saudável entre si e em outras comunidades. Isto explica a maneira onde muitas igrejas foram organizadas em nossa cultura, com um pouco de conteúdo de algumas já existentes e com um aspecto diferenciador das que já existem muitas outras são formadas perdendo o foco principal da proclamação, as almas perdidas, mas a criação de uma nova cultura eclesial que diferencie de outra também já instalada. Tal fato faz com que a construção teológica encontre sua pauta criando dogmáticas, que diferencie daquilo que Jesus mandou proclamar. A ênfase principal é na organização ao invés da proclamação de colocar as pessoas dentro da missio dei. Isto é um sério problema que precisa ser resolvido, e o resultado é a verdade bíblica mal interpretada do seu significado original. O que realmente deveria ser levado em conta, seria convergir em Cristo todas as coisas ao invés de haver disputas por almas, substituindo o evangelho pela cultura teológica, só assim estaríamos cumprindo a missão de Deus no mundo.
Sendo assim, o mandato cultural para a comunidade da fé, percebe-se como uma via de mão dupla, compreendida através das palavras de Jesus quando ele comissiona e chama sua igreja com essas palavras:
“Ide por todo mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Marcos 16:15a).
“Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados e eu vos aliviarei, tomais sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas” (Mateus 11:28-29).
O mandato cultural além de salvar as pessoas onde estão inseridas, envolve a vice-gerência desse homem sobre o cosmos. Era para o homem desenvolver e manter tudo aquilo que é criado por Deus. A igreja é a comunidade que está nesse movimento que vai e vem. O kerigma da igreja incorpora o mandato cultural que Deus entregou a humanidade em um relacionamento singular com a criação, para dominar e sujeitar (cf. Gênesis 1.28), guardar e cultivar (cf Gênesis 2.17) e ir ao mundo e proclamar o evangelho na intenção primeira de colocar a humanidade na intenção original de Deus fazendo com que as culturas de um modo geral, recebam a singularidade da vontade de Deus e sujeite-se em fé a Ele. O grande desafio da atualidade não consiste unicamente na salvação de alma, isto limita a ação de Deus em inúmeras outras áreas. Claro que a salvação é a porta de entrada como início das muitas intenções de Deus. No entanto, precisamos ainda considerar que em outras áreas, onde a forma que as coisas são assumidas dentro da cultura humana, precisam ser colocadas dentro da administração da revelação de Deus, através de homens fiéis a revelação bíblica nesta administração, bem como também a comunidade da fé (cf. Lucas 16:13-15).  O alerta aqui é bem preciso, pois todo povo que Deus chama deve lutar contra a correnteza das riquezas e da multidão que estão indo em sentido contrário.
Reforçando o que venho tecendo, penso que a fé cristã deveria não ser uma fé isolada, visto que o chamado, possui um retorno pela mesma via, sendo que agora como portadora de uma mensagem que deveria ser levada em consideração acima de tudo, ao invés de transportar a cultura da fé a outra cultura nos mesmos moldes. Sendo assim, a fé cristã depois de transformar-se em comunidade, não deveria ter a mesma aparência da cultura do proclamador, mas as dos traços daquilo que é traduzido para ela através das escrituras, incorporando na sua fé cristã.

A QUESTÃO DA PRIVATIZAÇÃO DA FÉ

A ênfase da proclamação do evangelho tem gerado uma ação concreta de salvação de almas. Por isso que temos presenciado um cristianismo alienado da realidade social, política e econômica. A fé deveria não se encerrar no âmbito privado sem nada a dizer para dentro do mundo à sua volta. Essa crença intimista e vertical tem tomado as igrejas que, cada vez mais, se afastam da arena pública nas suas múltiplas expressões culturais, criando uma cultura própria e muitas vezes difícil de ser assumida e interpretada. Isto tem gerado atualmente naquilo que estão chamando hoje, “os sem igrejas”, que não é cabível falar aqui.
É fundamental que, antes de mais nada, o cristão conheça a sua dupla cidadania: Nessas palavras de Jesus em sua oração sacerdotal: “Eles continuam no mundo... Eles não são do mundo...” (cf. João 17:11,16). Nós somos cidadãos dos céus, mas a nossa passagem para lá ainda não chegou, e enquanto estivermos aqui temos muito o que fazer, sem, no entanto, esquecermos que somos de lá. O problema é que além de sermos muito parecidos com o pessoal do lado de cá, muitas vezes nos deixamos influenciar com os erros do mundo, esquecendo do mandato cultural e de expressarmos aquilo que realmente somos e assumirmos do lado de lá sem reprimir e mudar a cultura, mas interpretá-la, encarnando a mensagem escrita, como traduz muito bem (Burns, pg. 17)
“Contextualizar o evangelho não é reescrevê-lo ou moldá-lo as realidades socioculturais da localidade, mas sim, traduzi-lo linguística e culturalmente para um cenário distinto a fim de que toda pessoa compreenda o Cristo histórico e bíblico”
Pensando ainda no resultado final, do que vem depois da proclamação, espera-se que os ouvintes sejam salvos e nascidos de novo, como característica de um autêntico discípulo seguidor de Cristo, comprometido em uma comunidade de fé para que possa crescer no uso dos dons recebidos para ser instrumento transformador em seu contexto cultural. O grande desafio atual é o de evitar a privatização da fé que assim como os judeus, a história está se repetindo com a atitude da igreja sem que haja mudança, mas uma luta como se fosse um mercado de almas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme exposto acima, compreendemos que Deus deu a revelação, o homem reagiu a esta revelação (fé) e se reuniu criando assim uma cultura cristã.  Percebemos essa cultura como sendo um complexo diverso e ao mesmo tempo unitário que inclui todo comportamento, capacidades e hábitos adquiridos por indivíduos que tomam parte de uma sociedade formalmente definida. Podemos considerar ainda que a realidade da fé de uma comunidade não pode ser confessada fora de uma mediação cultural, porém ao exteriorizar-se a comunidade corre o risco de demonstrar uma fé empobrecida, porque ela mescla-se com a do indivíduo e o resultado é o aparecimento dos dois (Palavra interpretada e o proclamador com sua cultura). Para se enxergar claramente, é preciso conhecer os dois, tanto a revelação escriturística como o portador dela (discernimento).
Em Jesus temos a definição de fé como o exercício das possibilidades ilimitadas. Já no livro de hebreus define como sendo o firme fundamento das coisas que se esperam e a certeza de fatos que se não veem. Instituir significa congelar comportamentos e disciplinar as ações dos indivíduos. Se entendermos que a fé é ilimitada, então ela não é objeto de institucionalização. A fé não expressa a institucionalização, mas a instituição dita as práticas e as ações coletivas, que nem sempre são coerentes com a fé, ou seja, a institucionalização não está na ordem da fé. Na instituição as pessoas não precisam necessariamente de uma revelação para criar uma igreja. Igreja socialmente organizada, no contexto de uma cultura religiosa, não tem como garantir a canonicidade da revelação sem impor ao fato revelado uma perda de qualidade (Souza, p.60).  Concluindo, seja qual for a representação cultural da igreja de Jesus Cristo aqui, ela subtrai enormes quantidade de bens da natureza da revelação de Deus. Como por exemplo o surgimento da Igreja significava a superação do exclusivismo judaico no que se referia à fé em Deus. Com o surgimento da igreja, o judaísmo sofreu com o seu exclusivismo no que se refere a fé em Deus (Apostila p.74). A contextualização do evangelho de Cristo que estamos fazendo é o resultado que estamos vendo em nosso país hoje. O grande desafio consiste na fidelidade as sagradas escrituras e ser um agente proclamador de cumprir a agenda de Deus na missio dei.


BIBLIOGRAFIA

1  - APOSTILA – Contextualização do Evangelho e Cultura – Professor Marcos Orison     Nunes de Almeida – Curso Pós-Graduação Lato Sensu – modalidade EAD. 2015.

2  - BURNS, Ed Barbara Helen. Contextualização Missionária. Editora Vida Nova, 1ª Edição: 2011. P.17
3  -  HORRELL, J.Scott. Ultrapassando Barreiras: Novas opções para a Igreja Brasileira na virada do século XXI. 1ª Ed. São Paulo: Editora Vida Nova, 1994.

4 - BOFF, Leonardo. Espiritualidade um caminho de transformação. 1ª Edição. Editora Sextante. 2001. p.39.

5 - Missão integral, Segundo Congresso Brasileiro de Evangelização, Editora Ultimato, Edição 2004.
6 - David Hesselgrave – Apostila do curso pagina 43 e estudos suplementares 5ª aula interativa slade 4.
8 - Mandato Cultural: Resgatando a Teologia da Criação Para Uma Vivência Pública da Fé -  Rodomar Ricardo Ramlow* Apostila do curso missão integral no contexto urbano da FTSA.